Fagulha
“Pensa numa coisa boa, algo que você goste muito, um sonho”, eu falei, antes de tirar a foto.
Ele pareceu ir longe, mas num lugar sensível e bem guardado da memória de afetos. Um daqueles cantinhos onde semeamos os sonhos, no solo fértil dos desejos, e torcemos para que a rega da esperança não nos falte.
Um dos maiores privilégios que percebi em mim e numa parte considerável das pessoas da minha bolha, foi o de continuar sonhando. As absurdas dificuldades e desespero de muitos não impediram que eu enxergasse um horizonte pós-pandemia onde meus projetos tivessem vez.
Mas enquanto meus sonhos e os de muita gente foram apenas adiados ou renovados, havia pessoas cuja única preocupação era sobreviver. Perambulando o dia todo entre filas de alimentos, uma após a outra, desviando da violência cotidiana, dormindo quando lhes era permitido e fugindo dessa realidade com o que tinham à mão ou no copo.
Mas não esqueçamos o que a foto de China me lembrou: os sonhos não morrem. Mesmo que a gente seja levado a desacreditá-los. Uma hora, uma simples e inadvertida fagulha incendeia algum desses lugares esquecidos, mas eternamente inflamáveis.
Não precisa ser fogaréu, basta ser fagulha.
(Foto e texto: Rafael Araújo)